É de se curtir. Foi com esse lema mais que convidativo na cabeça que eu iniciei meus paseios por Soure, um dos 12 municípios da Ilha do Marajó. O local é considerado também a capital informal da ilha. Há diversos motivos para Soure receber esse título. Ronaldo Guedes, escultor, ceramista e percussionista marajoara sintetiza os principais: “Soure se destaca por ter a natureza preservada, praias e paisagens exuberantes, um povo detentor de uma cultura milenar, culinária rica e a dança do caboclo marajoara: o carimbó.”
A pequena cidade de 23 mil habitantes, conhecida como "Pérola do Marajó" também se destaca pela sua arquitetura. O local foi projetado por Araão Reis, mesmo engenheiro e urbanista paraense responsável pelo projeto da capital mineira, Belo Horizonte, feito entre os anos de 1894 e 1897. Ainda que pequena e com poucos bairros, a divisão da cidade em ruas paralelas e travessas denominadas por numerais facilita muito qualquer trajeto e otimiza o espaço de um território rodeado por águas.
Em janeiro de 2015, passei uma semana em Soure e tive a oportunidade de desfrutar de todas as características que destacam essa cidade como ideal para turismo gastronômico, cultural e de aventura.
Para quem visita Soure pela primeira vez, o artesão dá dicas sobre o que não pode deixar de ser apreciado na cidade: “as comunidades tradicionais de pescadores, as danças carimbó e lundu, os rios, os igarapés, as praias, as revoadas de guarás e a cultura do vaqueiro”. Mas o que as comunidades tradicionais teriam de especial para que fossem colocadas numa lista de atrações turísticas?
Acontece que Soure abriga uma Reserva Extrativista (ou Resex) que, segundo classifica o Ministério do Meio Ambiente, é uma categoria de unidade de conservação de uso sustentável, que tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura das populações. Isso faz com que, por exemplo, a Praia do Pesqueiro (eleita a minha favorita) se assemelhasse a uma praia deserta, mesmo com uma pequena comunidade vivendo às suas margens.
A água morna, a proximidade com os mangues e os restaurantes modestos de administração familiar fazem do lugar um "quase-paraíso".
As paisagens do município são tão preservadas e selvagens que a fazenda São Jerônimo, localizada em Soure, foi escolhida como cenário para o reality show “No Limite”, produzido pela Rede Globo em 2001, onde pessoas testavam a capacidade de enfrentar desafios em meio à natureza.
Sobre as demais atrações turísticas materiais, as cerâmicas e os produtos de couro de búfalo dos curtumes são verdadeiras obras de arte. Ao visitar o ateliê do Rodrigo, fiquei surpresa com a fidelidade das cerâmicas inspiradas em peças arqueológicas. Essa importância dada à pré-história do território marajoara chega a ser emocionante.
Há 11 anos, Rodrigo e outros artesãos lutam para preservar s técnicas da produção de cerâmica tradicional. Em seu ateliê, o artista recebe a comunidade sourense, escolas e visitantes que buscam conhecer a cultura tradicional. Ele também realiza palestras e oficinas sobre a cultura marajoara.
O artesanato feito de couro bubalino também é muito importante na cultura do Marajó. Sandálias, bolsas e selas feitas nos curtumes locais, algumas vezes confeccionados por estrangeiros residentes em Soure, são peças de alta qualidade.
O carimbó, por sua vez, é um dos principais patrimônios imateriais da cultura marajoara. Assisti três apresentações da dança na semana em que estive em Soure e fiquei maravilhada com a beleza do espetáculo. Assim que os tambores começavam a tocar, a separação entre dançarinos e plateia desaparecia, todos dançavam juntos, rodando amplas saias de chita e batendo os pés descalços no chão.
A tradição do boi-bumbá também permanece viva em Marajó. “Uma das lembranças mais fortes da minha infância foi a chegada do boi-bumbá na casa dos meus avós numa noite estrelada de julho”, relembra Isabel Brito, professora e doutora em desenvolvimento sustentável e de família sourense.
A culinária do Marajó é extremamente saborosa e aromática. Ela é, inegavelmente, uma das mais fortes vantagens do turismo em Soure. Os cafés da manhã são regados a tapioca como conhecemos no sudeste ou em flocos, consumida como cereal matinal ou em receitas para bolos. Frutas como bacuri, cupuaçu, taperebá, murici são tão saborosas e vigorosas que fazem todo suco parecer uma vitamina.
O açaí causa estranhamento a quem é acostumado a degustá-lo com pó de guaraná e açúcar, como largamente se vê nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. No Norte, come-se o açaí junto ao prato salgado, como um tutu de feijão sem temperos. Com o que sobra da vasilha, adiciona-se o açúcar e faz-se a sobremesa.
Os peixes são abundantes e diversos, mas destaco o pirarucu, na minha opinião, um dos mais saborosos. As castanhas também são largamente exploradas na culinária, sendo a do Pará, claro, a mais utilizada.
O turu é uma curiosidade a parte. Legitimamente marajoara, delicioso e nutritivo, dizem ser até afrodisíaco. Dele se faz um prato que se assemelha a uma canja. O estranhamento surge quando o visitante vê pela primeira vez a origem daquela proteína saborosa e esbranquiçada. Esse molusco parece uma minhoca, bem comprida, branca e muito feia. Ele é encontrada nos manguezais entre os troncos de árvores. É preciso desprendimento das aversões costumeiras para provar aquele bicho vermiforme. Seu sabor vale muito a pena, eu posso garantir.
A maniçoba é a feijoada do nortista, típica em todo Pará. A diferença é que no lugar do feijão se usa a maniva, que deve ser cozida por sete dias ininterruptos, caso contrário, pode ser venenosa.
O tacacá é outro prato muito famoso no Estado. É feito com jambu (erva que deixa a sensação de dormência na boca), goma de tapioca, camarão e tucupi (caldo amarelado extraído da raiz da mandioca-brava) também muito conhecido por acompanhar a carne de pato, formando um dos pratos mais famosos do estado do Pará, o pato no tucupi.
Outra especialidade que não pode deixar de ser degustada numa visita a Soure é o Filé Marajoara que é a carne de búfalo acompanhado pelo queijo de búfala. Não deixe de experimentar também todos os outros derivados bubalinos, manteiga e, principalmente, o doce de leite. Asseguro que tudo é mais leve que os produtos bovinos.
Em Soure é possível encontrar pessoas muito especiais. Tenho ótimas recordações das conversas que tive com os ilhéus. Em um desses bate papos, a sourense Isabel Brito fez uma declaração de amor à sua terra de coração. A fala foi tão bonita que eu achei que o mínimo que poderia fazer seria publicá-la na íntegra:
“O Marajó é um bom lugar para começar a conhecer uma outra parte do Brasil, apesar da massificação dos modos de ser e viver do Sudeste, que é realizada pela televisão e meios de comunicação em geral, muitos costumes são mantidos no Norte e resistem, como o costume de comer na rua. O paraense gosta de comer na rua. Tem o tacacá de toda tarde que até hoje é feito e vendido nas casas das tacacazeiras. Nas esquinas do centro da cidade e dos bairros tem gente vendendo comida, vatapá, maniçoba, acho isso incrível. O Marajó tem uma culinária incrível, criativa, que incorpora a carne de búfalo. O povo é muito gentil, carinhoso e simples. A simplicidade é algo interessante de se observar. A vila de pescadores do pesqueiro em Soure me encanta....É uma ‘simplicidade sofisticada’, bela mesmo.”
Fotos: Laura Luz