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Filosofia Grega

Sócrates: a virtude leva à felicidade?

O professor de filosofia Roberto Bolzani Filho explica a questão com base nos conceitos de Aristóteles, Xenofonte e Aristófanes
Bruno Torres
27/09/19

Quando, por algum exercício da imaginação, necessitamos pensar na imagem genérica da figura de um filósofo, é provável que, em nossa mente, criemos uma figura de longa barba branca, vestido em uma toga a perambular por uma cidade da Grécia antiga, sempre questionando as pessoas sobre o significado mais profundo de todas as coisas e ideias. Pode-se dizer que essa figura genérica que esboçamos corresponde, em alguma medida, a uma personagem decisiva para toda a história da filosofia: Sócrates.

Para tratar da relevância dessa figura na gênese filosófica, o Portal NAMU entrevistou o professor Roberto Bolzani Filho, mestre, doutor e livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde leciona na área de filosofia antiga.

Portal NAMU: Há na filosofia socrática a vinculação das ideias de virtude e felicidade? Para Sócrates, ser uma pessoa virtuosa necessariamente significa ser uma pessoa feliz?
Roberto Bolzani Filho: Sim, mas este é um tema grego de modo geral, não apenas exclusivamente socrático. A reflexão moral, para os pensadores gregos, é um tipo de reflexão feita com vistas à obtenção da felicidade.

Ser virtuoso nos obriga a praticar a justiça, ou seja, ações virtuosas implicam em ações justas?
A justiça é uma das virtudes, dentre aquelas consideradas como as quatro virtudes cardeais: a sabedoria, a justiça, a temperança e a coragem. Devemos compreender a noção de justiça à luz desta ideia de virtude. A justiça tem aquilo que hoje chamaríamos de dimensão ética, no sentido da conduta individual, e dimensão política, no sentido de uma ação em comunidade. Para Sócrates, Platão e outros pensadores, não há uma separação muito clara e rígida entre esses dois domínios. Ética e política estão associados.

O que é ser moralmente bom, de acordo com Sócrates?
O tema da virtude é bastante complexo. Porque dependemos de saber a qual Sócrates estamos nos referindo. O Sócrates dos diálogos de Platão, por ser interrogativo e aporético [nesses textos, não há uma conclusão, a questão colocada não é resolvida e Sócrates não fecha nenhum ponto com uma declaração definitiva], não faz muitas afirmações que se possam considerar positivas sobre a ideia de virtude, nisso dependemos muito da atitude de separar certos diálogos como socráticos e certos diálogos como platônicos, o que tem sempre de ser encarado com muita cautela, já que todos os diálogos são, de fato, platônicos.

O retrato da figura moral de Sócrates nos diálogos de Platão é um retrato mais compreensível pelas atitudes socráticas, por exemplo, a recusa de negar a sua filosofia diante do tribunal e a recusa de fugir da prisão, no diálogo Críton. São atitudes que indicam que Sócrates entende a filosofia como produtora, mais do que como um saber teórico. Ela é constitutiva de um modo de vida. O que se considera como sendo uma possível concepção socrática (mas isso é muito discutível nos diálogos de Platão) é a de que, para Sócrates, a virtude é um saber teórico, um conhecimento que se adquire. E, uma vez adquirido, o agente que possui esse conhecimento agirá de modo virtuoso. Ou seja, quem conhece o bem, quem conhece as virtudes, por causa deste conhecimento sempre agirá pautado por esse saber.

Essa é uma concepção bastante forte, de uma ética que será chamada posteriormente de intelectualismo moral, a ideia de que se adquire uma virtude por meio de um saber moral, à maneira, por exemplo, de um saber matemático. A ideia será matematizada posteriormente nos diálogos de Platão. Dela, Aristóteles irá se afastar.

No entanto, se analisamos o Sócrates de Xenofonte, encontramos nele um retrato mais bem delineado da moral socrática. Em Xenofonte você vê Sócrates defendendo três grandes virtudes, o que ele chama de resistência (kharteria), uma resistência às dores ou aos prazeres. O que ele chama de autarkheia, a autossuficiência, e o que ele chama de egkratheia, ou autocontrole. O sábio seria aquele que possui esse trio de valores. Aparecem, eventualmente, algumas ideias desse tipo em Platão, mas não se tem bem constituída a noção de uma ética socrática. Nos diálogos platônicos, encontramos as linhas gerais de uma ética, principalmente naqueles que são considerados diálogos de maturidade, e não nos aporéticos.

Dúvidas

Como podemos compreender melhor a relação da virtude e da política para os gregos?
Quando Sócrates, de Platão, interroga um interlocutor qualquer, ele frequentemente trata das questões relativas às virtudes, em comparação e analogia a questão das técnicas de um modo geral. Um argumento que Sócrates apresenta a seus interlocutores, frequentemente, é que, quando dizemos que alguém é virtuoso, se ele é virtuoso, então devemos aceitar que ele goza de um estatuto semelhante àquele que se confere ao indivíduo que possui certa técnica. Por exemplo, todo mundo concordaria que se tivéssemos de fazer uma viagem de navio, nós elegeríamos um especialista, um homem que conhece e detém certo saber de como conduzir bem um navio.

O mesmo vale se eu quiser construir uma mesa ou outro móvel de madeira, há um tipo de indivíduo na cidade, chamado de marceneiro ou carpinteiro, que é reconhecido como detentor de um conhecimento sobre isso. O que Sócrates e Platão no fundo defendem é que quando pensamos na questão de quem é que deve dizer o que é justo e o que não é justo – portanto, quem deve legislar -, também deve ser entendido como um indivíduo dotado de certo saber, e reconhecido na cidade como indivíduo dotado deste conhecimento.

No fundo, essa é uma tese antidemocrática, uma tese antissofística, pois uma ideia fundamental que está por trás da visão dos sofistas, e da atividade do ensino da retórica e da arte da persuasão na cidade, é que numa cidade democrática todos são capazes de dizer o que é justo, portanto, todos são capazes de ensinar virtudes. Um diálogo bastante preciso sobre isso é o Protágoras, no qual Sócrates faz essa comparação, segundo a qual se fizéssemos uma assembleia e nela quiséssemos saber quem devemos escolher para construir navios, todos iriam dizer que há um construtor de navios, pois somente ele detém o saber sobre isso, e assim por diante.

Mas quando se trata de deliberar o que é bom para a cidade, ou seja, o que é justo para a cidade, todos se acham dotados do conhecimento para isso. Por sua vez, a posição socrático-platônica é contrária a essa ideia, isso irá levar Platão, num texto de maturidade, A República, a formular sua tese mais famosa, de que é o filósofo quem deve governar a cidade, pois somente ele detém o saber do que é o justo. Portanto, ele legisla legitimamente, pois tal saber legitima sua legislação. Então, de certa forma, essa é uma tese que já está formulada de maneira oblíqua e indireta nos chamados diálogos socráticos.

Como podemos identificar a real filosofia de Sócrates, na medida em que todas as informações sobre esse filósofo são oriundas de textos posteriores de discípulos e outras fontes clássicas?
Isso é o que se chama de questão socrática ou problema do Sócrates histórico. Há muita controvérsia em torno disso, e existem várias posições sobre esse assunto. Alguns acham que o verdadeiro Sócrates, digamos assim, poderia estar nos diálogos de Platão, outros acham que poderia estar nos textos de Xenofonte, que são as duas fontes mais naturais para essa investigação, por assim dizer. Mas também existem outras como Aristófanes, em As Nuvens, que é uma fonte satírica; algumas informações de Aristóteles e várias menções feitas por filósofos posteriores. Há também muita coisa escrita sobre Sócrates que se perdeu.

Eu creio que em nenhuma dessas fontes devemos esperar encontrar o verdadeiro Sócrates, porque todas elas são uma tentativa de reconstruir a filosofia de acordo com diferentes aspirações e interesses. Então, eu diria, o que exatamente foi o pensamento socrático é algo que não se pode afirmar com absoluta certeza.

O que é mais interessante é conhecer, por assim dizer, esses diversos Sócrates, e estudá-los e compreendê-los como diferentes formas de recuperar o espírito do socratismo. Mas o que realmente foi o socratismo será sempre uma questão conjectural, não há um método histórico rigoroso que possa nos garantir onde ele está. Então, o que nos cabe é procurar entender essa figura com base nessas fontes, principalmente nos diálogos de Platão, mas nunca imaginando que ali iremos encontrar um retrato fiel, já que nenhum desses textos são documentos históricos, não foram escritos como documentos históricos. São recriações certamente relacionadas ao Sócrates real, o Sócrates histórico, mas também já enviesado, combinado com o interesse dos próprios discípulos e dos próprios escritores.

O Sócrates que ficou para a história da filosofia é principalmente o Sócrates dos diálogos platônicos?
O Sócrates que fez fama e fortuna na história da filosofia é o Sócrates de Platão, porque ele é o discípulo socrático mais dotado de fôlego filosófico. Por isso, Platão consegue elaborar uma figura muito rica, muito mais do que a encontrada em Xenofonte, por exemplo. Contudo, isso não significa que nos relatos de Xenofonte não haja um retrato interessante. Também há um retrato muito interessante e que não é totalmente compatível com o de Platão, porque nos apresenta um Sócrates mais positivo e menos interrogador.

Mulher sorrindo

E qual a importância do Sócrates de Aristófanes, que é por assim dizer, mais caricato?
O Sócrates de Aristófanes é objeto de ridicularização, pois se trata de uma comédia. Ele aparece, meio como um físico, como alguém que investiga os assuntos da natureza, meio como um sofista, que ensina retórica, arte da argumentação persuasiva a todo custo. Mais um problema para tornar difícil decidir quem é o verdadeiro Sócrates.

E o que podemos dizer sobre o Sócrates descrito por Aristóteles?
É um Sócrates bem enxuto, bem econômico e o que interessa para Aristóteles é destacar dois pontos apenas: Sócrates como aquele que pensou a busca por definições em questões morais, e que teria elaborado a noção de argumento indutivo, em busca do universal, que são temas muito aristotélicos, na verdade.

O que distingue o chamado “método socrático” em relação aos seus contemporâneos sofistas?
Levando-se em conta sempre o testemunho de Platão, o que caracteriza o método socrático é seu caráter interrogativo aliado a uma intenção de refutar o interlocutor. Aparentemente, Sócrates está mais interessado em fazer com que seu interlocutor chegue à conclusão de que aquilo que era considerado um saber, na verdade não é um saber. Para isso, Sócrates deve refutar o pretenso saber do interlocutor. O texto-chave para entender essa questão é o episódio do oráculo em Delfos da Apologia de Sócrates, onde o Sócrates de Platão irá narrar alguns acontecimentos.

Sócrates diz que não sabe nada, mas o deus diz que ele é o mais sábio dos homens, ou que ninguém é mais sábio do que ele. Ele não entende o que isso quer dizer e então vai procurar homens sábios pela cidade. Ao interrogá-los, constata que, na verdade, eles não sabem o que julgavam saber. É um método de diálogo por meio de interrogação, que visa exibir ao interlocutor o seu falso saber. É um método polêmico, portanto. E isso o distancia do sofista, porque ele, de modo nenhum, estaria procurando denunciar seu interlocutor. Procura transmitir um saber, para que seu interlocutor o utilize, fundamentalmente um saber da arte do discurso e da persuasão. Essa noção de refutação por meio da interrogação e do diálogo é praticamente a chave do método socrático.

Em um diálogo de maturidade de Platão, chamado Teeteto, nós encontramos a ideia de maiêutica, que é a forma pela qual Sócrates explica que quando ele interroga, essa interrogação não contém nenhum saber positivo da parte dele. Essa é a ideia de que, segundo Sócrates, há uma tentativa de ajudar o interlocutor a descobrir a verdade por sua própria conta. É um método de alcance pedagógico bastante amplo, a ideia de que o professor, o condutor do diálogo, não coloca no interlocutor um saber, ele auxilia o interlocutor a alcançar um saber, por sua própria conta. Não é tão óbvio que essa noção de maiêutica esteja perfeitamente encaixada naquilo que se encontra em alguns diálogos de Platão.

Sócrates tem dois tipos de interlocutor: há um tipo, que Sócrates acha claramente que pode ser ainda salvo de certo tipo de falso saber, geralmente os jovens; e há um tipo de interlocutor que pensa saber alguma coisa e que por isso resiste a Sócrates; aparentemente, esse tipo de interlocutor não reage bem à refutação. Ou seja, as coisas não são tão bem encaixadas nesse esquema da ideia de maiêutica.

É possível relacionar essa ideia de que Sócrates em seus diálogos não busca alcançar definições com o fato de que todos os diálogos socráticos, de Platão, serem chamados também de diálogos aporéticos?
Exatamente, a ideia de que os diálogos aporéticos são socráticos tem a ver com essa associação forte entre a atitude socrática e a atitude refutativa. A refutação se dá produzindo uma aporia no interlocutor. Quer dizer, o interlocutor tinha um saber e, no decorrer do diálogo com Sócrates, esse saber acaba se mostrando infundado, sem uma base justificada, e nisso consiste a refutação. Em alguns diálogos, você encontra Sócrates conduzindo o interlocutor a defender uma tese que contraria a tese inicial. Aí o interlocutor se vê nessa situação de embaraço, de falta de saída, que é o que significa literalmente a palavra aporia.

Foto 1 : Thinkstockphotos
Foto 2: Jocab Boetter / Flickr: @boetter / CC BY 2.0
Foto 3: 
Clériston Martinelo / Flickr: Raízes Coloniais / CC BY 2.0


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