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Medicina Integrativa

Ministério da Saúde ou da Doença?

Médica que coordenou PNPIC entre 2006 e 2011 questiona compromisso das últimas gestões federais com a política
Bruno Torres
27/09/19

O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece, desde 2006, tratamentos e práticas para promoção de saúde que utilizam recursos da chamada medicina integrativa. Os cinco sistemas que podem ser encontrados em alguns hospitais e postos públicos são: homeopatia, medicina tradicional chinesa (que inclui acupuntura), medicina antroposófica, fitoterapia e termalismo (terapias que usam a água mineral).

Após nove anos da criação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), no entanto, engana-se quem pensa que a política simboliza uma mudança de mentalidade dentro do poder público. A opinião é da médica sanitarista e mestre em saúde coletiva Carmem De Simoni, que participou da criação e coordenou a PNPIC entre 2006 a 2011. Para ela, “a política de práticas é hoje hostilizada dentro do Ministério da Saúde”.

Uma das principais razões para a crítica de De Simoni é a displicência do Ministério da Saúde em relação à PNPIC, que, desde sua criação, não é beneficiada com recursos indutores que promovam a política. “Em uma situação de cobertor curto, eu vou tirar de onde não tem importância pra mim, e quem perde com isso é justamente a política de práticas, que visa a promoção da saúde. Não temos a cultura de trabalhar com a saúde e sim com doenças. O Ministério da Saúde é um ministério de doenças, não de saúde”, alfineta a médica.

Portal NAMU: Como e em que condições surge a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PNPIC)? Carmem De Simoni: A história das racionalidades médicas no Sistema Único de Saúde (SUS) remonta a muito antes de a política ser construída. Ela nasce mesmo da demanda da sociedade nas conferências nacionais de saúde, e eu gostaria de destacar a 8ª Conferência. Essa conferência, realizada em 1986, é um marco de criação para o SUS, que nasce dois anos depois, na Constituição de 1988. Nos anais dessa conferência já encontramos o desejo manifesto pela sociedade de acesso à oferta da homeopatia, acupuntura e fitoterapia pelo sistema público.

Depois disso, em todas as conferências, essas práticas estão sempre presentes como um clamor da sociedade. Em 1999, passados mais de dez anos, o Ministério da Saúde inclui no Sistema Único procedimentos relacionados a essas atividades, porém sem nenhuma divulgação. A partir daí, iniciativas como a do Hospital do Servidor Público, em São Paulo, por exemplo, passam a ser ressarcidas pelos procedimentos ofertados de homeopatia, acupuntura.

Essa é a realidade que a gente tem até 2003, quando assume o presidente Lula. Aí as sociedades médicas se juntam para cobrar do ministro da Saúde o desenvolvimento de uma política política que desse o devido lugar às ditas “práticas alternativas”. E o então ministro Humberto Costa e o Jorge Solla (secretário de Atenção à Saúde) se reúnem com as sociedades médicas para construir a política. Nesse primeiro momento, as sociedades que procuraram o Ministério foram a de homeopatia, acupuntura, medicina antroposófica e fitoterapia. E as principais dificuldades? Houve muita resistência por parte da comunidade médica? Tivemos uma enorme dificuldade com a questão da acupuntura. Como se sabe, a acupuntura é uma atividade multiprofissional, não sendo regulada por uma única categoria. Isso certamente daria problema na aprovação junto ao Conselho Nacional de Saúde, posto que o texto estava sendo gestado por técnicos do MS, da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), da academia e por sociedades médicas. Levamos os textos para aprovação na CIT (Comissão Intergestores Tripartite) designada para isso, formada por gestores do SUS, que aprovou o texto com a ressalva de que essa política não teria recursos indutores. Estou destacando isso porque esse é um dos pontos centrais da política que ainda segue assim, sem recursos.

Nós não pudemos fazer nada diferente, tivemos que nos restringir às sociedades médicas e levamos os textos para aprovação na comissão designada para isso, formada por gestores do SUS, que aprovou o texto com a ressalva de que essa política não teria recursos indutores. Estou destacando isso porque esse é um dos pontos centrais da política que ainda segue assim, sem recursos.

Na maioria das políticas federais em se tratando do SUS, há um recuso indutor. À exceção da PNPIC. Então ela foi aprovada como se dissessem: ah, deixa isso acontecer. Depois dessa primeira aprovação, como é o ritual das políticas, foi para aprovação final no Conselho Nacional de Saúde. E no conselho, nós levamos uma chamada de atenção já que não cabe ao Ministério da Saúde regular nenhum tipo de exercício profissional. No nosso país, isso cabe às devidas categorias profissionais profissões organizadas. O CNS ainda sugeriu incluir mais um recurso, o termalismo social, por sermos um país com grande potencial para o uso terapêutico das águas.

Depois de uma revisão compartilhada com o CNS, o texto foi aprovado em dezembro de 2005 e publicado na forma de portaria em Maio de 2006. O ano de 2006 foi muito profícuo para nós. Eu pude acompanhar e trabalhar de forma articulada em três políticas criadas pelo Ministério: a de atenção básica, a de promoção da saúde e, naturalmente, a PNPIC. São políticas irmãs, que se apoiam, se sustentam e rodam na atenção básica que é a grande política mãe. Agora, em 2015, completamos nove anos, já é um bom tempo de política, mas seguimos sem recursos indutores.

Quais foram os critérios utilizados para selecionar quais as práticas que participariam da PNPIC? Claro que todo mundo queria incluir o seu quinhão, então nós criamos critérios de inclusão de especialidades. Definimos que era preciso ser uma racionalidade médica e ter respaldo em categorias profissionais, porque não adiantava nada incluir a ayurveda, que é uma racionalidade médica, se nenhuma categoria chama a ayurveda para si.

No caso da saúde pública, temos que trabalhar com a normatização legal do nosso país. Em outros países isso é diferente, os ministérios da saúde regulam o exercício profissional, mas no nosso país não é assim. Então a gente tinha que ter esse critério de responsabilidade. Nesse processo, racionalidades, como é o exemplo da ayurveda, ficaram de fora da política. Então entraram, enquanto grandes racionalidades, medicina chinesa, homeopatia, medicina antroposófica e a fitoterapia como recurso terapêutico primeiro no nosso país. Entrou também como recurso terapêutico o termalismo, o uso medicinal das águas, que foi uma solicitação do próprio conselho.

Como é a situação atual da PNPIC? Hoje é uma política hostilizada no Ministério da Saúde. Nós perdemos a coordenação nacional, que existia de fato mas não de direito, já que nunca migrou para o organograma formal do Ministério. E isso empoderava a política de certa forma. A nova gestão do Ministério, que assumiu em 2010, praticamente matou a PNPIC na reformulação interna do Departamento de Atenção Básica. Eu falo isso sem medo de errar. Porque tirá-la de uma coordenação nacional, com uma equipe designada, uma infraestrutura, e colocá-la numa coordenação de área técnica, junto com a área de comunicação, é pra matar a política.

"A nova gestão do Ministério, que assumiu em 2010, praticamente matou a PNPIC na reformulação interna do Departamento de Atenção Básica. Eu falo isso sem medo de errar."

Na minha saída, ainda dividiram a PNPIC com a Política de Hipertensão Arterial. Naturalmente, a gestora só poderia dar atenção para a hipertensão e suas consequencias que se constituem em uma importante causa de mortalidade no nosso país. Esse foi o golpe de misericórdia na PNPIC. Muito hábil por parte da gestão do Ministério, já que sem explicitar a morte, você desempodera ainda mais algo que já era frágil. E de lá pra cá, algumas coisas aconteceram, mas a divulgação é zero. Nos relatórios de gestão do Ministério não há uma linha falando da política de práticas. Ora, se ela não aparece, se não é divulgada, e se o recurso alocado desaparece, então não são ações de acolhimento à política, são ações de hostilidade à política.

Veja o caso da dengue. Nós temos exemplos exitosos no nosso país do uso de complexos homeopáticos pra manutenção do estado vital a ponto de evitar o desenvolvimento da doença. Dengue hemorrágica nesses municípios é zero. E eu não estou falado de qualquer município, eu estou falando de Macaé, no meio da alta mortalidade no Estado do Rio de Janeiro. Macaé não só despenca os seus novos casos como elimina a letalidade por dengue hemorrágica. Me parece que um Ministério da Saúde que estivesse interessado na saúde dos cidadãos e não em manter outros interesses, estaria aberto à discussão. Até porque na PNPIC está previsto o uso de medicamentos homeopáticos nos surtos e epidemias.

Seria correto dizer que, pelo cenário que você desenha, a situação da PNPIC não está melhorando? Nós temos essa indisposição, uma não crença, uma ridicularização de uma racionalidade tanto quanto qualquer outra, de uma forma gratuita, pelo puro preconceito. Age-se da seguinte forma: o que eu não entendo, o que foge à minha capacidade de compreensão, eu desabono.

Outra coisa é que a política verdadeiramente nunca encantou os olhos dos gestores. Ela não atende a nenhuma necessidade da indústria farmacêutica, inclusive ela vai bem contra a indústria farmacêutica. Ela lida com questões do cuidado que no mundo moderno são questionáveis, como tempo de consulta, por exemplo. Defendemos vínculo, coordenação do cuidado, integralidade na atenção e, para tal, tempo de consulta, tempo de encontro entre o profissional da saúde e o seu paciente. Isso também fere a linha da produtividade.

E em uma situação de cobertor curto eu vou tirar de onde não tem importância pra mim. Se a grana aperta eu corto a academia, não corto? Corto a aula de dança, certo? Eu corto as coisas da promoção da saúde, porque não temos a cultura de promover a saúde e sim trabalhar com doenças, o Ministério da Saúde é um ministério de doenças, não de saúde. Se é o ministério que põe a promoção da saúde dentro da área de agravos e doenças não-transmissíveis, ele não está promovendo a saúde. Ele vai induzir que aquela prática só servirá se prevenir essas doenças, entende? Essa política é muito contra hegemônica nesse sentido. E aí a gente lida com forças e poderes.

Pensando dessa maneira, é até surpreendente que a política tenha sido criada lá atrás, em 2006. Essa política só foi publicada naquele momento porque o ministro da Saúde não era médico, porque se fosse médico ela não teria saído. Eu falo isso porque a pressão da categoria médica foi tamanha, pra todos os ministros médicos, para que não aprovassem a política por conta da questão da acupuntura multiprofissional. Você não faz ideia da pressão. O ministro não era médico, era farmacêutico, e publicou a política. Não fosse isso, eu tenho dúvidas se ela teria saído, porque todos os ministros que vieram depois dele eram médicos. É com esse tipo de força que a gente lida, e o Conselho de Medicina não se acanhou em processar a política com dois dias de vida. Dia 5 de maio foi o primeiro processo para a suspensão da política nacional (Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares). Por sorte tivemos defesas fortes para garantir que quem fosse julgar tivesse acesso a todas as informações e ainda estamos ganhando.


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